Um papo com Bruno de Almeida

Um artista que transforma o cotidiano em poesia visual, desafiando convenções e celebrando a criatividade que nasce da precariedade.

Com um olhar atento para as nuances do interior brasileiro, o trabalho de Bruno de Almeida transcende fronteiras ao explorar temas como sustentabilidade, convivência comunitária e reinvenção. Em sua estreia literária, o livro-imagem “Gambiarra”, Bruno nos convida a refletir sobre a capacidade de improvisar e criar, mesmo diante de adversidades, enquanto suas ilustrações tão impressionantes quanto divertidas envolvem crianças e adultos em narrativas repletas de significados e sensibilidades.

Bruno de Almeida

Artista e pesquisador, Bruno de Almeida é formado em Design de Moda pela Universidade de Franca e atualmente faz mestrado na Faculdade de Belas Artes da Universidade do Porto (FBAUP), em Portugal. O ilustrador nasceu em uma comunidade rural no município de Muzambinho, interior de Minas Gerais, mas seu trabalho já ultrapassou muitas fronteiras. Ele ficou em primeiro lugar no concurso de ilustração “Encontro do Sol com a Lua”,  organizado pela Solisluna Editora em 2023, participou da Illustrators Exhibition na Feira do Livro Infantil de Bolonha em 2024 e foi o primeiro artista brasileiro a ser convidado para criar a identidade visual da vigésima quinta edição da mesma feira, que ocorrerá no primeiro semestre de 2025.

Nesta entrevista, conheça suas inspirações, referências e a força de sua arte.

Seu primeiro livro publicado chama-se Gambiarra. O que te levou a escolher esse tema e como ele reflete a história que você queria contar?

Em meados de maio de 2023, recebi uma mensagem no meu celular da minha madrinha, que tem 80 anos, dizendo: “Sua mãe acabou de chegar aqui na casa da Vó Carminha de bicicleta e trouxe a cachorra dentro de uma sacola!”. A cena parecia completamente absurda: minha mãe não costuma andar de bicicleta, e a cachorra, que mede cerca de 20 centímetros e já tem 12 anos, estava dentro de uma sacola daquelas usadas para ir ao supermercado. A situação parecia improvisada, uma grande gambiarra!

Nesse momento, comecei a perceber a subversão da bicicleta como um meio de resistência. Ela deixava de ser apenas um veículo de locomoção individual e se tornava uma plataforma para novas possibilidades, desafiando as funções pré-determinadas. Resgatei memórias da infância, quando tentava, muitas vezes sem sucesso, carregar brinquedos, livros e outras coisas na bicicleta. A "gambiarra", nesse contexto, transformou-se num ato de reinvenção – uma maneira de consertar, reorganizar o mundo em cima de uma bicicleta e explorar novas perspectivas para objetos comuns. 

Como foi o seu caminho até o universo dos livros infantis? Há algum livro infantil que marcou sua infância ou que seja seu favorito?

Cresci em uma comunidade rural no interior de Minas Gerais, na divisa com o estado de São Paulo, o que tornava difícil o acesso à vida cultural dos centros urbanos. Tínhamos nesse cenário toda a exuberância e riqueza que a mata atlântica poderia oferecer e uma escola infantil com pedagogia humanista próximo a minha casa. O acesso cultural que era possível para as crianças daquela comunidade vinha através da escola e dos livros, que por sua materialidade transitável consegue chegar em lugares remotos, levando novas perspectivas de mundo. 

Os livros eram meus companheiros dos dias de chuva ou das brincadeiras dentro de casa. Era a minha companhia nos momentos em que não podia brincar no quintal e observar os tucanos ou as galinhas com filhotes. Então, fui crescendo nessa companhia e aprendendo a olhar o mundo que vivia, entre as florestas e os rios, a partir das imagens que os autores escreviam no livro. Eu vivenciava o cenário dos livros infantis no cotidiano e sentia uma magia enorme nisso, o que foi um grande privilégio. 

A minha coleção de livros favorita eram os contos da Eva Furnari com a Bruxinha, pois me ensinou desde pequeno a desdobrar a realidade do cotidiano e ver poesia, frescor e graça naquilo que nos cerca. Além de ter crescido também com os contos de Monteiro Lobato com Sítio do Pica-pau Amarelo que descrevia um cenário análogo ao que vivia, com histórias que eu mesmo experienciava na casa da minha avó ou quando brincava com meus amigos na mata.  

Quais artistas e ilustradores são suas principais referências? 

Cândido Portinari é a referência mais vívida que tenho no meu trabalho, pois somos vizinhos geográficos e aprendi a olhar para minha origem a partir dos olhos dele. Aprendi com Portinari a elevar as nuances da vida rural a um abstracionismo plástico poético, mas também usar da estética como um recurso para se pensar a discussão política. Assim como Portinari, o movimento Antropofágico com Tarsila do Amaral, Mário de Andrade e outros, me auxilia a encontrar recursos narrativos e conceituais para falar sobre meu ponto de vista no mundo. 

Entre outros artistas estão Hélio Oiticica e a sua ideia de “o museu é o mundo”, Miró e os desdobramentos da imaginação, Alexander Calder e a física do movimento, Oskar Schlemmer e o Ballet Triádico, Louise Bourgeois e a psicanálise na arte, Leonilson e a introspecção da vida cotidiana etc etc etc 

 

A formação em moda influenciou seu estilo de ilustração de alguma forma?

A minha formação em Moda proporcionou uma nova maneira de enxergar o mundo, fundamentada nas linguagens e suas simbologias. Aprendi a interpretar comportamentos sociais de massa e a construir narrativas que emergem desses contextos. Essa abordagem se reflete nos diversos simbolismos presentes no meu trabalho, que abrem espaço para interpretações variadas.

Os quatro anos de estudo em Moda foram desafiadores, mas também os mais divertidos da minha vida. Essa experiência me ensinou a considerar o mundo a partir da vivência do corpo, reconhecendo-o como protagonista. Quando inicio um desenho, a primeira imagem que surge em minha mente é a de como o corpo conduzirá a narrativa. A partir daí, adiciono elementos que complementam essa ideia. Por exemplo, em “Gambiarra”, o corpo do personagem assume um papel central, capaz de contar a história por si só, sem a necessidade de cenários ou camadas de fundo. Essa abordagem resulta em uma imagem que se concentra no que realmente importa para a narrativa: a experiência. 

Livro Gambiarra de Bruno de Almeida

Você nasceu no interior de Minas e estudou no interior de São Paulo. O que esses interiores têm em comum e como eles representam o Brasil para você? De que forma as identidades brasileiras influenciam suas criações?

Chamamos esses lugares de “interior”, mas muitas vezes são vistos como espaços marginalizados, precários e periféricos dentro da construção social brasileira. Com frequência, são considerados atrasados, reduzidos à natureza e à “boa comida”, apesar de abrigarem cerca de 40% da população do país.

Refletir sobre o mundo a partir dessa perspectiva me ensina a valorizar o cotidiano e a me ancorar no presente, além de dar voz a histórias que foram silenciadas pela falta de privilégios. Compreendo essas identidades como cosmologias, que moldam meu modo de ver as imagens e de viver.

O interior me ensinou a reconhecer a potência que reside nas margens, na precariedade do dia a dia e na necessidade vital de viver em comunidade e em redes de apoio.

Nesse contexto, quando, por exemplo, vemos um tamanduá andando de bicicleta com seu filhote em uma cidade, como retratado em Gambiarra, percebo o deslocamento desses personagens que foram influenciados a deixar suas áreas rurais prósperas para enfrentar a precariedade nos grandes centros urbanos — uma narrativa que reflete a história industrial do Brasil. 

O livro-imagem envolve tanto crianças, pelas ilustrações lúdicas, quanto leitores mais experientes, pela profundidade visual. O que te inspirou a estrear na literatura com um livro-imagem? Como foi a escolha dessa linguagem?

A narrativa visual está intimamente relacionada com o mundo do Design, pois desenhamos imagem o tempo todo - sejam produtos, editoriais, campanhas publicitárias, etc. Isso contribuiu também para a produção de imagens nas redes sociais e hoje pensamos na importância da literacia visual.

Por essas questões, me parece contemporâneo pensar um livro que provoque a interpretação e promova o pensamento crítico ao questionar o que está sendo apresentado. O livro-imagem, assim como a obra de arte na galeria, existe no momento em que o sujeito a interpreta, oferecendo vida e significado. Nesse momento de interpretação, é onde acredito que reside a transformação do sujeito, pois a experiência de olhar para a imagem e refletir sobre seu significado pode levar a um crescimento significativo 

Assim como a obra de arte na galeria, o livro-imagem existe no momento em que o sujeito o interpreta, oferecendo vida e significado.

Gostaria de fazer livros que promovam esse lugar de transformação,  oferecendo um espaço para que as pessoas se tornem mais críticas e reflexivas sobre o mundo ao seu redor. Acredito que, ao cultivar essa consciência, podemos empoderar os indivíduos a serem intérpretes ativos de suas experiências cotidianas.

 

Como foi o seu encontro com a Solisluna? O que chamou sua atenção na editora e como essa parceria se desenvolveu? 

Quando recebi a premiação, em primeiro lugar, do concurso “Encontro do Sol com a Lua” em celebração aos 30 anos da Solisluna, foi muito importante pra mim, porque era um momento frágil que pensava em desistir da ilustração, assim como vários outros jovens ilustradores desistem por falta de reconhecimento. Esse reconhecimento em uma editora no universo do livro infantil, contribuiu para que eu continuasse e apostasse nas minhas narrativas. Após a premiação do concurso, recebi o convite para fazer um livro e surge então “Gambiarra”. 

Encontro do Sol com a Lua - Bruno de Almeida


O encontro do “Sol com a Lua”, foi um grande encontro para mim, por ter encontrado pessoas que estavam disponíveis para me ensinar, acolher minhas dúvidas e ansiedades, mas também celebrar as conquistas. Sei que esses espaços são raros e por isso valorizo o desenvolvimento da relação com a Solisluna, pois é um lugar de abertura ao diálogo e troca constante para um objetivo comum: transformação social a partir da literatura para infância.

 

Clique aqui para saber mais sobre o livro Gambiarra

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